28 de mar. de 2010

QUESTÕES GRAMATICAIS




A gramática é a mais perfeita das loucuras, sempre inacabada e perplexa, vítima eterna de si mesma e tendo de estar formulada antes de poder ser formulada — especialmente se se acredita que no princípio era o Verbo. Estou estudando gramática e fico pasmo com os milagres de raciocínio empregados para enquadrar em linguagem “objetiva” os fatos misteriosos da língua. Alguns convencem, outros não. Estes podem constituir esforços meritórios, mas se trata de explicações que a gente sente serem meras aproximações de algo no fundo inexprimível, irrotulável, inclassificável, impossível de compreender integralmente. Mas vou estudando, sou ignorante, há que aprender. Meu consolo é que muitas das coisas que me afligem devem afligir vocês também. Ou pelo menos coisas parecidas.
Por que “estender” é com s e “extensão” é com x?
Não me conformo com a acentuação do verbo “averigüar”. O certo é “averigüa”, “averigúe”, mas eu me recuso a acertar. Só digo “averigüa” e “averígüe” e acredito que a maior parte das pessoas que ouço falar acentua do mesmo jeito. “Averigúe” soa como uma exortação obscena gaúcha.
Já não posso argumentar o mesmo em relação a “tóxico”. Como muitos baianos, só digo “tóchico”. Quando vou dizer “tócsico”, eu tusso, mas admito que se trata de um problema pessoal. “Intocsicação”, então, é impossível. Felizmente Jorge Amado também fala “tóchico” e, assim, alimento alguma esperança de conseguir status de exceção para a nossa maneira de pronunciar.
Cresce a lista das palavras banidas da língua: nada prejudica, tudo penaliza; não se bota nem se põe, coloca-se; não se vende, comercializa-se; não se faz uma sugestão, mas uma colocação; não se calcula, computa-se; não se compra pão na padaria, mas na panificadora; e, finalmente, precisamos com urgência de um adjetivo para substituir “chocante” no sentido antigo, pois, como se sabe, ele, a exemplo dos políticos do PDS, mudou de partido e hoje é antônimo do que era antes.
Nenhuma gramática ou dicionário, que eu saiba, reconheceu a visibilíssima existência do pronome indefinido “nego”, pronunciado “nêgo”, que, inclusive, já entrou faz muito para a literatura, pelo menos a literatura das crônicas de jornal. Na verdade, um estrangeiro que disponha do melhor dicionário e da melhor gramática continuará ignorando um pronome de uso universal nos bate-papos informais, com sua variante paulista — “neguinho”. Não é a mesma coisa que “alguém” ou “todos”, mas anda perto; assim como sua forma negativa — “nego não” — não é a mesma coisa que “ninguém”, mas anda perto. Todo mundo conhece frases como “nego aqui é muito tolerante”, “nego não conserta esta bagunça porque não quer”, “nego vai lá e dá um pau nele” etc. Nestas questões lexicográficas, nego muitas vezes deixa escapar coisas óbvias como esta.
Dois verbos estão a carecer de estudo. O primeiro é o verbo “chamar-chamar”, de uso restrito, porém intenso. Ninguém, ao discar o telefone e não encontrar resposta do outro lado, diz “chama e ninguém atende”. Invariavelmente, diz “chama-chama e ninguém atende”. É o verbo “chamar-chamar”, certamente defectivo e com uma conjugação curiosa por flexionar também no meio, que precisa ser regulamentada—e com certeza o deputado Freitas Nobre tem algumas idéias sobre o assunto.
O outro é o verbo “coisar”, que, apesar de constar dos dicionários, é um pouco desprestigiado, senão mesmo insultado, quando me parece uma das grandes conquistas da língua portuguesa, de crescente atualidade na era tecnológica. Como conseguiria um indivíduo mecanicamente inepto como eu sobreviver sem o extraordinário verbo — tendo de coisar o como-é-o-nome do aparelho de som e pedir ao técnico que coise por favor o negócio que faz a imagem da tevê ficar coisando o tempo todo?
Destino infeliz, o do verbo “seviciar” e o do substantivo “sevícias” — este último sofrendo a humilhação adicional de perder o s final, a troco de nada, nos jornais, descendo assim de seu raro status de pluralia tantum. Na crônica de polícia, “seviciar” não é mais maltratar fisicamente, como era, mas, sim, submeter sexualmente. Isto gera algumas chateações, porque alguns redatores ainda se lembram do significado oficial e, se alguém apanha na cadeia, escrevem que esse alguém foi seviciado. Geralmente, quando o apanhado sai da cadeia, em vez de agradecer a denúncia feita pelo jornalista, vai lá querer dar um pau na cara dele (já aconteceu com um repórter meu, quando eu trabalhava num jornal baiano; “eu nunca fui seviciado, nunca, isso nunca!”, bradava o sujeito, indignado, com um hematoma deste tamanho na cara).
Contribuições brasileiras ao desenvolvimento da língua inglesa: Margareth, em lugar de Margaret; smocking, em lugar de smoking; dopping, no lugar de doping; handicap, no sentido oposto ao da palavra inglesa; e mais Yull Brainer, Errol Fláine, New Hampichaire e Tácson, Arizona.
Palavras impossíveis de publicar na imprensa diária: saciedade (na expressão “à saciedade”, só sai “à sociedade”); cesura (só sai “censura”); Margaret Thatcher (só sai “Margareth”); intestina (na expressão “guerras intestinas” só sai “guerras intestinais”). E, finalmente, não adianta escrever “pluripartidismo”, como seria correto, em vez de “pluripartidarismo”, porque vem um copidesque e emenda. “Partidarismo” não é derivado de “partido”, mas de “partidário”. Pluripartidarismo, assim, é a carreira dos ditos políticos do PDS, que são e já foram partidários de qualquer coisa, contanto que não saiam do poder — verdadeiros pluripartidaristas, portanto. Regime político de muitos partidos é “pluripartidista”, mas só sai “pluripartidarista” mesmo.
Um doce aí para quem:
a) disser o que é derivação parassintética;
b) disser qual é o certo, se é obsecado, obcecado ou obsedado e qual dos três que deu “obsessão”;
c) conjugar certinho os verbos colorir, fulgir, comedir-se, precaver, aprazer, adequar, foragir-se, emergir e retorquir;
d) disser qual é o ordinal de 8.569;
e) disser qual é o feminino de “rajá”.

P.S.: Eu também não sei.
                                                                                                                                              (11/08/1985)

RIBEIRO, João Ubaldo, 1941. Arte e Ciência de Roubar Galinha: crônicas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. p.96

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