Uma reflexão sobre o significado da obra nos últimos 150 anos
Por
Maria Zilda da Cunha* e Nathália Xavier Thomáz**
E de que serve um livro sem figuras e nem diálogos? Esta frase é de Lewis Carroll, em uma de suas Alices. A questão que coloca reverbera em sua obra – dada a extrema iconicidade que ela atinge e a capacidade inusitada de estabelecimento de inúmeros diálogos. Instaurando-se na História e atravessando o ambiente tempório-espacial que o homem tece através da e na linguagem, Alice de Carroll acompanha tranquila e em múltiplos diálogos o advento de novas lógicas, novas geometrias, de novas fronteiras espaciais, novas físicas, novas matemáticas, de novas tecnologias e novas formas de relações sociais.
O hibridismo de gêneros e códigos, as referências e as contínuas operações intersemióticas, que permeiam a própria composição da obra, revelam uma mirada metalinguística, uma intensa consciência de linguagem, mesmo no interior do ato criativo. Esse processo ininterrupto de diálogo e de criação de signos – a que chamamos semiose – instalou-se na obra e faz de Alice no País das Maravilhas uns dos constructos ficcionais do século XIX com as mais fortes feições estéticas do século XXI.

Alice é matéria literária, como diz Nelly Novaes Coelho, “mais ameaçadora que gratificante, ainda que procurem, ao longo do tempo, torná-la mais gratificante que no original”. Foi em 1862, durante um passeio no Tamisa, que o matemático e fotógrafo Charles Lutwidge Dodgson inventou uma história para entreter as filhas de um amigo, -
Henry George Liddell, o deão do Chist Church – e utiliza como personagem principal uma das meninas. Em sua narrativa envolveu pessoas, situações e canções que permeavam a vida das crianças, tornando-as participantes ativas na tessitura da estória.
Três anos depois, cedendo a um pedido de Alice – a ouvinte-protagonista – Charles escreve a narrativa para dar a ela de presente. O autor acrescenta ao texto verbal algumas ilustrações feitas por ele mesmo e intitula a estória: Alice por baixo da terra ( Alice’s Adventures Underground).
Mais tarde, publicou o livro, com ilustrações de John Tenniel, com o novo título: Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland) e o faz sob o pseudônimo de Lewis Carroll.
Ao transferir-se para as folhas, que formaram o presente de Alice, e, posteriormente, o livro publicado em 1865, a estória sofreu um processo de adaptação, da narrativa oral para o suporte livresco. Portanto, pode-se dizer que foi o próprio Carroll quem começa o processo de releitura, revisitação, diálogo e reprodução de Alice no País das Maravilhas. Processo que foi realizado de maneira muito mais intensa com o advento da indústria cinematográfica.

A primeira adaptação de Alice para o cinema foi realizada por Cecil Hepworth, em 1903, através de uma arte que começava a dar seus primeiros passos, sob grande influência do teatro e bastante vinculada a textos escritos para expressar as falas do cinema mudo. Depois deste primeiro trabalho, a estória foi revisitada muitas vezes pela linguagem cinematográfica.
Com certeza, a mais famosa até os dias de hoje é a animação de Walt Disney, lançada em 1951. Através da fantasia, do fantástico e do encantamento característicos das animações de Disney, a aventura de Alice ficou ainda mais popular. Algumas concessões foram feitas, muitas atenuações nos jogos propostos pelo nonsense do livro e, apesar de perder o caráter lúdico e crítico da obra original, a produção da Disney configura uma imagem que ainda ecoa no imaginário moderno.
Assistimos, este ano, a uma retomada do diálogo com Alice no País das Maravilhas pelos estúdios Walt Disney na produção de um filme dirigido por Tim Burton. A grande novidade é sua realização em 3D. A proposta desta versão – às vésperas do lançamento – é contar a estória de uma Alice adulta que retorna para o universo do nonsense carrolliano para ajudar as criaturas do País das Maravilhas.
O diálogo com a obra original já pode ser percebido pelas imagens divulgadas do filme. Observa-se a tentativa em criar uma estética tão desproporcional e absurda quanto à proposta pelo livro.

Ao fim e ao cabo, é preciso lembrar: a estória de Alice estabeleceu diálogos com todas as formas de arte, num processo constante de atualização e revisitação. Há mais de 150 anos elementos dessa obra figuram no imaginário popular e falam à sociedade em que vivemos.
* Maria Zilda da Cunha é professora doutora do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, na Área de Literatura Infantil e Juvenil da Universidade de São Paulo.
** Nathália Xavier Thomáz é mestranda em Estudos Comparados de Literaturas da Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo.
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